quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Quando a janela é postal

Há coisas que nasceram para emparceirar. Assim, a Janela do Convento de Cristo em Tomar e o postal ilustrado. Uma fotografia desta janela foi, precisamente, a “arma de guerra” desencantada por Eugenio d’Ors na célebre “querela do barroco” das décadas de Pontigny de 1931. Arrisquemos traduzir, com alguma liberdade, alguns excertos do relato dessa experiência:


Quando apresentei, em Pontigny, a imagem da admirável Janela de Tomar, um sobressalto de admiração percorreu todos os presentes: em alguns deve ter despoletado uma verdadeira crise intelectual (…).
A arquitectura barroca – chegou-se a consenso – distingue-se sempre por três signos: antes de mais, o
dinamismo, que substitui as harmonias do repouso pelas intensidades da agitação e (…) “as formas que pesam” pelas “formas que voam”; em seguida, a profundidade, que cava os relevos, molda as sombras e parece dotar as estruturas arquitectónicas com uma nova dimensão; por último, o sentido pictórico, que introduz na arquitectura os elementos cromáticos, incluindo os elementos líricos que jogam com a luz os mais variados jogos da fantasia, a dispersam, a fazem vibrar e cantar.
Estabelecidas estas precisões, a visão da nossa janela estava votada a produzir um efeito fulminante. Onde se pode ver mais terrivelmente – diria até mais loucamente – do que aqui as formas a agitar-se, os relevos cavar-se, a luz cantar? Em que obra de arte do mundo inteiro, o dinamismo, a profundidade, o lirismo irrompem [s’éclatent] de um modo tão manifesto, para o maior deleite ou o pior escândalo. Nesse dia, à noite, após a apresentação da imagem, a boa causa contava, em Pontigny, com um bom lote de convertidos: doravante, a batalha estava ganha.

Quão bem escreve este espanhol tomado de lusitana paixão! Permito-me transcrever mais algumas linhas. Se calhar, não é pecado.

No que me diz respeito, vi sempre, nesta janela, um dos símbolos essenciais da mensagem lusitana no mundo. Constitui, a seu modo, um poema épico, um emblema colectivo total, à semelhança, porventura, da epopeia de Camões,
Os Lusíadas. Existe um terceiro epos na arte pictural representado, este, pelo Políptico de Nuno Gonçalves. E, tal como em Pontigny ninguém hesitou em reconhecer a Janela de Tomar como obra transcendental, também o significado deste Políptico foi prontamente captado em Paris, aquando da exposição de “Arte Portuguesa”: outra revelação, outra vitória.
O público, apenas entrava nas salas do museu das Tuileries, logo se dirigia para o fundo, como se tivesse adivinhado uma presença solene. Sentia imediatamente a revelação da importância desta obra ao deparar-se com um mundo completo, com um dos monumentos fundamentais da cultura. Uma atmosfera singular envolve esta obra; desprende-se uma espécie de mistério que não provém nem do tema nem dos múltiplos enigmas iconográficos ou arqueológicos que a sua composição encerra. Está banhada – assim parece – por uma luz verde, luz fria onde se lê uma profunda
saudade.
(D’Ors, Eugenio, Du Baroque, Paris, Gallimard, 1935, pp. 142-144).
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Pavilhão de Portugal na Exposição Colonial Internacional de Paris, 1931

No mesmo ano, 1931, em que Eugenio d’Ors proferiu esta conferência em Pontigny, decorreu, de Maio a Novembro, em Vincennes, a Exposição Colonial Internacional de Paris, com a presença de um Pavilhão de Portugal, com projecto de Raul Lino (ver postal ilustrado).

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Lembranças




Postais 1 e 2

Neto de comerciante, foi-me dado assistir à morosa hesitação da escolha dos postais ilustrados. Não deixa de constituir tarefa azada, quase um milagre, conseguir acomodar, num rectângulo tão exíguo, emissor, destinatário, pretexto, mensagem e imagem. Lembro-me, também, da recepção de alguns postais. Ao estremecimento e à comunhão iniciais, com o postal a passar de mão em mão, sucedia-se a exposição num “altar improvisado” e o recolhimento numa gaveta, caixa ou álbum destinado às relíquias memoráveis. Quase todos nós, apesar dos anos e das mudanças, preservamos alguns destes tesouros semiprivados. Compõem uma espécie de bálsamo para a nossa identidade.



Postal 3


Os postais ilustrados comportam uma vertente estética. Podem ainda apresentar uma aura de magia, risco, aliás, próprio de um objecto que se interpõe entre duas pessoas. Absorvem o emissor que neles se inscreve (“estou aqui!”) e convocam o destinatário que neles se adivinha (“Esta menina és tu a pedir à Nª Sª pª vires passar as férias a casa”: postal 1). Podem, inclusivamente, aspirar a uma certa tangibilidade das almas ou, se se preferir, a um magnetismo dos corpos separados: “Se o pensamento fosse visível, ver-me-hias sempre ao teu lado” (postal 2). Muitos postais ilustrados são dádivas. Antes de mais, dádivas de si. São lembranças, “something between a message and a present( Andrew Martin: http://blogs.guardian.co.uk/travelog/2008/07/postcards_back_from_the_edge.html).


Postal 4
São prendas! Apreciadas, exibidas e guardadas. Pessoalizadas em sintonia com o outro, pedem criatividade, dedicação e sentido de oportunidade. Confesso nutrir alguma predilecção pelos postais ilustrados anteriores a 1902, aqueles em que “de um lado só se escreve a direcção”. Reduzem o importante ao essencial. E o essencial, como bem sabemos, cabe no buraco de uma agulha. As soluções, variadas, oscilam entre a incontinência de letras que afoga a imagem e o gesto discreto e precioso que lhe acrescenta valor. Mesmo com a possibilidade de escrita no reverso do postal, as marcas e as inscrições na imagem perduraram, como uma espécie de luxo ou de requinte pessoal ( atente-se no postal 3 e, sobretudo, no pormenor do postal 4: estes postais podem ser vistos no blogue Postais Antigos: http://postais.do.sapo.pt/). É certo que, na maioria dos casos, estas prendas são surpresas esperadas, ao sabor das efemérides ou das viagens. Se tardam, sente-se a falta, num misto de frustração e inquietação.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Árvores de pedra






Dafne, para escapar do assédio de Apolo, transforma-se em loureiro
(pormenor da estátua Apolo e Dafne de Gian Lorenzo Bernini: 1622-1625).


“Que tenho a força de sumir também” (Mário de Sá-Carneiro)

Semear na areia (Antecipação da praia)


Na orla salgada
Um pêndulo pasmado
Nem voo, nem asa
Apenas ar queimado

Desfio nos dedos
O sargaço do tempo
E acendo um cigarro
Nas barbas do sol

Com a alma a tossir
Deixo-me marinar
Num caldo de cinzas
Com búzios a boiar

Vultos sem sombra
Nadam em pó
Com óculos escuros
E mamilos míopes

Corpo quebrado
Semeio seixos na areia
À espera que cresçam
Árvores de pedra

terça-feira, 22 de abril de 2008

Eugenio d'Ors e a Janela do Convento de Cristo

"Lorsque je présentai, à Pontigny, l'image de l'admirable janela de Thomar, un élan d'admiration souleva tous ceux qui étaient présents: il devait chez certains se traduire par une véritable crise intellectuelle (...).
L'aarchitecture baroque - consentirent-ils enfin - se distingue toujours par trois signes: d'abord, le
dynamisme, qui remplace les harmonies du repos par les intensités de l'agitation et (...) "les formes qui pèsent" par "les formes qui volent"; la profondeur ensuite, qui creuse les reliefs, pétrit les ombres et semble doter les structures architectoniques d'une nouvelle dimension: le sens pittoresque enfin, qui introduit dans l'architecture des éléments chromatiques, des éléments lyriques même qui jouent avec la lumière les jeux les plus variés de la fantasie, l'éparpillent, la font vibrer et chanter.
Ces précisions obtenues, la vision de notre fenêtre devait produire un effet fulminant. Où peut-on voir plus terriblement - j'allais dire plus follement - qu'ici, s'agiter les formes, se creuser les reliefs, chanter la lumière? En quelle oeuvre d'art du monde entier, le dynamisme, la profondeur, le lyrisme éclatent-ils aussi manifestement, pour le plus grand délice ou le pire scandal?"
D'Ors, Eugenio (2000),
Du Baroque, Paris, Gallimard (1ª ed. 1935), pp. 142-143.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

"O importante é a rosa" (Saint-Exupéry)

"E a rosa é sem porquê" (Angelus Silesius).

"El barroco no ofrece en ninguna parte terminación, sosiego o quietud del ser, sino que introduce siempre la inquietud del devenir, la tensión de la inestabilidad. De ello resulta, una vez más, una impresión de movimiento.
Aquí aparece el motivo de la tensión de las proporciones.
El círculo, por ejemplo, es una forma absolutamente quieta y estable; el óvalo es inquietud, parece querer variar a cada instante, no da una impresión de necesidad. El barroco busca, por principio, estas "libres" proporciones. Lo que está determinado y lo que ha recibido una conclusión repugna a su naturaleza" (Wölfflin, 1991: 68)
"Lo que su arte quiere expresar, no es el ser perfecto, sino un devenir, um movimiento. Es por esta razón por la que la estructura formal se vuelve más suelta. El barroco no teme ni las proporciones impuras ni la disonancia en la armonía de las formas" (Ibid: 73).
"El arte del Renacimiento buscava alcanzar el estado de perfección y terminación, "cosa que la naturaleza no es capaz de producir nada más que en casos muy raros". El barroco actúa mediante la excitación del amorfismo" (Ibid: 75).
Wölfflin, Heinrich (1991), Renacimiento y Barroco, Barcelona, Paidós, 1ª ed. 1888.

Sonäka: The Art of Vodka, Plus et Plus, 2008